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UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SUL Jornalismo Impresso -Professor Paulo Ribeiro Perfil: Lucio Yanel


Compositor de caráter

No violão, uma extensão do corpo. Nas notas, uma expressão da alma.

Lucio Yanel – o chamado ‘Mestre da Guitarra Pampeana’ – transmite um som que acalma ao dedilhar de um ritmo selvagem. A poesia, presente na obra do músico, retrata a tradição de um povo. A simplicidade, nas palavras e nos gestos do compositor, sinaliza para o tom do caráter de um homem

“Ninguém me avisou que eu não sabia tocar violão, então fui lá e toquei”, disse a voz suave da inocência, ou, talvez, da ousadia – aqui, a interpretação é livre. Importa é que o dono dessa voz foi lá e tocou. Federico Nelson Giles é o seu nome de batismo, contudo, ninguém o chama assim. Lucio Yanel é o seu nome artístico, mas tampouco é conhecido dessa forma. ‘O Mestre da Guitarra Pampeana’ é sua marca e sina. A idade? Pouco vale. “Meus 68 anos não representam nada, porque a minha alma é jovem”, afirma o músico, violinista, intérprete, autor, compositor, ator e – como se não bastasse – folclorista. O título maior de Federico Giles, entretanto, não vem do instrumento que toca ou da profissão que exerce, mas do seu modo de ser. Lucio Yanel, como dizem todos aqueles que o conhecem e passam mais de cento e vinte segundos na sua presença, é ‘gente finíssima’.

Cabelo grisalho, penteado para trás. Os olhos, já pequenos, se fecham ainda mais quando o compositor se põe a tocar. O bigode (é claro), também grisalho, desenha a boca de um apaixonado pelo que se perpetua. “Sou tradicionalista, porque amo a tradição e gosto de conservar o que é bom. A evolução pode existir em muita coisa, mas não na música de raiz. Gosto daquilo que transmite uma mensagem, e a mensagem é passada na essência”, declara, com um sotaque argentino perceptível a anos-luz de distância, mas que, de forma alguma, impede sua ‘mensagem’ de ‘ser passada na essência’.

‘Una guitarra’ argentina

Corrientes é o nome da cidade, na Argentina, que concebeu, em dois de maio de 1946, o compositor de melodias que tocam almas. O que faziam os pais de Lucio Yanel quando ele nasceu? “Acredito que faziam amor. Ódio é que não era”, observa o intérprete, com a capacidade de tornar simples e divertido algo que pareceria inconveniente, desnecessário mencionar.

A família do folclorista não possuía vínculo algum com a música. A mãe María Rabenau de Giles era professora; o pai Ventura Giles, ferroviário. O fascínio pelas melodias surgiu em um dia de sol. O cenário? Um ‘campinho’ improvisado, onde uma turma de garotos jogava futebol. A bola, que rolava de um lado para o outro, era o centro das atenções de todos os meninos – exceto de um. O olhar do pequeno Yanel estava focado em outro guri que passava por ali, levando um instrumento maior que ele próprio. “Foi amor à primeira vista. Larguei tudo e fui me sentar ao lado daquele garoto com o violão – e nós perdemos o jogo, porque eu era goleiro”, lembra. “Eu queria levar aquele instrumento para casa, mas, obviamente, o menino não deixou. Minha mãe teve que ir lá, porque eu comecei a chorar”, narra o intérprete.

O pai de Yanel, então, presentou o filho de nove anos com ‘una guitarra’, como é chamado o violão, em espanhol. “Não que ele tivesse alguma escolha, porque a minha insistência não o deixava dormir, nem comer. Eu ficava o tempo todo dizendo: ‘una guitarra, una guitarra, una guitarra’”, recorda.

Lucio Yanel se tornou músico profissional aos 18 anos, após concluir o Ensino Médio. “Foi sofrido, mas eu tinha que terminar o ‘secundário’. Do contrário, meu pai me tirava ‘la guitarra’”. O artista até tentou começar uma carreira acadêmica. “Umas quinze, vinte vezes, no mínimo. Nunca consegui me adaptar, porque não conseguia ficar longe de ‘la guitarra’ um momento sequer. Até que decidi, então, estudar ‘la guitarra’”, relata.

O autodidata ingressou no mercado. O primeiro disco, aos 18 anos, não fez muito sucesso, mas a realização estava somente no fato de ter gravado. O talento incomparável, desenvolvido no ofício, marcava as pegadas deixadas pelo artista por onde passava. ‘Una guitarra’ se tornou ‘la guitarra’ e, assim como uma extensão especial do corpo, acompanhava seu portador em todas as ocasiões.

Rio do ano inteiro

Yanel atravessou o Atlântico e conheceu o continente europeu para descobrir que a saudade da sua terra era maior do que pensava. Cruzou, então, o mesmo oceano, e regressou à América. O voo em que o folclorista estava, no ano de 1971, tinha como destino a capital da Argentina, Buenos Aires, e, como escala, o Rio de Janeiro. Entretanto, quando o avião pousou na cidade do Cristo Redentor, Yanel desembarcou. “Eu desci só para passar uns dias e conhecer o Rio, afinal, minhas malas haviam sido despachadas direto para a Argentina. Como devem ter notado, estou no Brasil até hoje”, pontua.

Por causa da sua profissão, Yanel viaja constantemente, e se considera privilegiado por isso. “Eu conheço um Brasil que é maravilhoso, porque sua gente é maravilhosa. Tenho a impressão de que as pessoas não se dão conta disso. Eu sei, porque não tive a sorte de nascer aqui”, declara. O país do ontem, do hoje e do futuro: o Brasil conquistou Lucio Yanel e a paixão foi recíproca.

Rio Grande do Som

O nome era João. O prefixo, general. João Baptista de Oliveira Figueiredo, o trigésimo presidente do Brasil, foi o responsável por iniciar uma fiscalização rigorosa de estrangeiros com documentação irregular no país. Yanel e tantos outros se viram obrigados a voltar para suas terras natais, em 1978. Na Argentina, no município de Ituzaingó, Yanel ficou por quase quatro anos.

Durante três anos, naquela pequena cidade, o vizinho da frente de Yanel foi o rio Paraná. Os amigos que fez por lá não pôde levar junto quando partiu. “Os dourados, os surubins, os pacús... Todos pulavam e me cumprimentavam, e eu nem ligava. Quando fui embora daquele lugar, descobri que quase ninguém me cumprimentava, muito menos os peixes. Eu era feliz e não sabia”, observa.

O fim da Guerra das Malvinas, com a vitória inglesa, resultou na migração de muitos argentinos, que saíam pelo mundo à procura de trabalho. “Era um ‘salve-se quem puder’, porque não havia mercado. Para um músico, então, muito menos”, recorda Yanel. A maioria deixou o continente americano, mas o compositor argentino havia desenvolvido ‘um caso’ com o país vizinho que falava português.

O ônibus em que o intérprete embarcou,em 1982, tinha a cidade São Paulo por destino final. Entretanto, parece que desembarcar em terminais não é o ponto forte de Yanel. O município de Carazinho, no Rio Grande do Sul, foi sua última parada, e, em Passo Fundo, participou de um festival de música. O argentino, já considerado brasileiro, estava se tornando, também, gaúcho.

O Rio Grande do Sul foi o Estado privilegiado que pôde enxergar o violão pelos olhos – e pelos dedos – de Lucio Yanel. O ‘Mestre da Guitarra Pampeana’ não é chamado assim à toa. Quando os polegares, médios, indicadores, mínimos e anelares de Yanel tocam as cordas do violão, o som se propaga no ar. Mais que uma canção, e também mais de uma melodia. O intérprete não precisa de acompanhamento, porque, ao tocar, seus dedos se multiplicam e a música transborda. Quem ouve e não vê, não acredita que haja apenas duas mãos tocando. Não é descrença. Também não é inacreditável, porque quem presencia passa a crer. É simplesmente incrível.

Caxias da identidade

Quando é chamado de ‘Mestre da Guitarra Pampeana’, Yanel tende a usar os dedos – calejados pelas cordas de nylon do violão – para pentear os cabelos grisalhos. A interpretação modesta do reconhecimento que conquistou com sua dedicação pela arte e pela cultura ainda se mostra perceptível nesses pequenos gestos do tradicionalista. “Eu não sabia que tinha virado uma personalidade. Com o tempo, fui me dando conta. Parece que nasci para isso, não? Quer dizer, sem dúvida eu nasci para isso”, afirma. Entretanto, Yanel revela que encontra dificuldade ao passar seu conhecimento adiante. “Como colocar a alma e o coração ao retratar a cultura de uma região? Isso não tem como ensinar. Esse amor incondicional pela tradição não se explica, se vive”, ensina.

O mestre em retratar a tradição das regiões que habita escolheu, há seis anos, morar em Caxias do Sul. “Aqui eu sinto uma alegria, um conforto, me sinto bem. Comparada a outras cidades do Interior, Caxias parece Miami, sempre crescendo. Tem natureza, riqueza, boa gente, e, acima de tudo, tem algo que muitas cidades perderam: identidade. Por que não morar em um lugar assim?”, questiona.

O lar do violonista, em Caxias, é compartilhado com as poucas pessoas que ama mais que seu violão: a esposa Fátima e o filho Pedro, de 20 anos. Yanel tem mais cinco filhos – Nelson, Diego, Ayelén, Homero e Julian –, sem contar os netos. Homero vive em Buenos Aires, mas os outros filhos do compositor também desenvolveram um ‘caso’ com o Brasil e escolheram o país para morar.

Além dos traços e feições trazidos pela genética, mais coisas são herdadas de pai para filho. A insistência, por exemplo, pode ser uma delas. “O meu filho Pedro não me deixa em paz, porque quer ‘una guitarra, una guitarra, una guitarra’. Eu não quero dar ‘una guitarra’ para ele, porque quero que ele seja jornalista. Pode até ter as duas profissões – músico e jornalista –, mas, primeiro, tem que investir em uma”, insiste. Yanel demonstra certo fascínio pela profissão que comunica e divulga a informação. Ele próprio se considera um jornalista. “Eu recolho todas as informações, componho e as transformo em música. Eu sou um repórter da alma.”, declara.

Ninguém avisou Lucio Yanel que ele não sabia tocar violão, então foi lá e tocou. Muito menos houve alguém que o dissesse para ser simples, humilde e dono de um caráter inestimável. Federico Nelson Giles também não foi informado de que repórteres da alma não existem, e que ele não poderia, por meio do seu talento, tocar o coração de quem o escutasse. Então foi lá e tocou.

O amigo canhoto: uma fonte de inspiração

As rodas de chorinho, milonga, chamamé e outros tantos ritmos eram – e ainda são – uma paixão de Yanel. Instrumentos nos braços, calos nos dedos e vozes nas gargantas. Em meio a esse cenário, o músico conheceu inúmeros talentos que acabaram se tornando ídolos e fontes de inspiração. “Eu tive muita sorte. Participava dessas rodas com os ‘cobras’, e quem não era ‘cobra’ era eu. Apenas um aprendiz guiado pelo que via e escutava: isso que eu era”, comenta.

O ano era 1980. Yanel saiu em caravana cultural com os tais ‘cobras’. O destino? Nada menos que o continente europeu. Portugal, Espanha, Inglaterra, França e os Alpes suíços foram marcados com os passos e com o talento dos integrantes da caravana. “De todos os nomes, o menor era o meu”, confessa.

Paris era a cidade de Atahualpa Yupanqui, um dos mais famosos nomes da música latina e, também, um dos maiores ídolos de Yanel. Na apresentação da caravana, ele estava presente. “Quando o vi, era tarde demais. Se tivesse visto antes, não teria sido capaz de tocar”, confessa o artista, ao explicar que tremia só por estar na presença de Yupanqui. “Ele chegou para mim e disse: ‘Chango, usted toca bien’, e me convidou para tomar um mate. Eu não queria mais nada”, relata. E esse foi apenas o início de uma amizade que superou distâncias. O ídolo e seu fã voltaram a se encontrar em 1984, quando Yupanqui veio a Porto Alegre. Nessa época, o fã já havia se tornado um ídolo também.

Ao contar a história do amigo, é possível perceber nos gestos das mãos, nas expressões do rosto e na entonação da voz o carinho e a admiração que Yanel sente pelo camarada. “Atahualpa era um sonhador comunista – e eu também. Que jovem, nessa época, não era? Demora até entender que não se pode consertar o mundo sozinho”, conta. Yupanqui, entretanto, por sua ousadia e vontade insaciável de lutar, era perseguido pela polícia. ‘Se busca un cantante guitarrista que toca la guitarra con la mano izquierda’, diziam os cartazes espalhados pelas regiões da Argentina. Os refúgios onde o cantor se escondia do cantor sempre mudavam. Em um deles – parece que foi na província Entre Rios – acharam o músico e o prenderam. Em sua cela, no presídio, com uma rolha na mão esquerda e um papel pardo na direita, Yupanqui escreveu a letra de uma canção: ‘Me anda buscando una bala. Algún día la toparé. Si el pueblo cabe en mi pecho, cabe una bala también. (...) El hombre vive diez vidas, y muere una sola vez’. A variação das notas, o tom da voz e a melodia foram dados, depois, por Yanel.

Sorte e um privilégio. É isso que o compositor diz ter. “Eu pude chamar Atahualpa de mestre e camarada. Uma honra para poucos”, afirma. O amigo canhoto viveu dez vidas ou mais, adoeceu e morreu ‘una sola vez’ na França, em 1992. A lembrança de Atahualpa Yupanqui é preservada pelos fãs, família e amigos. Alguns, em especial, podem ir além da lembrança: são capazes de homenagear e reproduzir, em suas próprias vozes e instrumentos, o talento e a obra dessa lenda da música folclórica. Lucio Yanel é um deles.

O ‘Mestre da Guitarra Pampeana’ ainda vive suas dez vidas.

Atahualpa Yupanqui é uma delas.

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